sábado, 31 de março de 2012

O Significado Ascético da Virgindade I

Hoje vamos dar início a uma breve série de postagens onde será transcrita uma parte do livro "Do Amor Humano" (In Defense of Purity) de Dietrich Von Hildebrand , Tradução de Elgitha Resende de Almeida.


Em consequência da Queda, permanece no homem, mesmo após sua redenção, uma tendência para baixo, uma propensão para orgulho e concupiscência. mesmo que sua conduta esteja, como um todo, governada pela determinação de não ofender a Deus, este impulso para baixo não cessa de existir, e seu comportamento, facilmente, exibe uma certa fusão destes vícios. Não estou pensando nessas atitudes de concupiscência ou orgulho que são gravemente pecaminosas porque envolvem uma revolta deliberada contra Deus, e que, portanto, estão presentes quando um homem comete pecado mortal, nem mesmo no pecado venial, mas na fraqueza geral do homem em relação a si próprio, sua desordem e as atitudes em que esta imperfeição se expressa.

Que alegria há no trabalho bem sucedido, na assistência e boa vontade para com os outros, no próprio desempenho do dever, mesmo nas graças recebidas, que está livre de uma gota de presunção, orgulho e prazer egoísta? Que deleite na posse de uma bela casa, no prestígio de uma posição elevada, está de todo despido de todo amor-próprio ávido? Que satisfação, mesmo com os bens terrenos lícitos, agradáveis aos sentidos(a comida bem feita, por exemplo; vinhos caros, uma cama macia) está livre por completo da indulgência gulosa, indolência ou complacência passiva com o desejo?
A vida do cristão comum, que evita o pecado mortal e procura evitar os veniais á medida que os reconhece, mas que, sem escrúpulos de consciência, se entrega a tendência óbvia da natureza por meio de concessões ao amor-próprio, e nunca se livra desta indolência confortável, jamais emerge da cálida, agradável corrente da vida - ainda se encontra impregnada de orgulho e concupiscência, embora certamente tenham sido expulsos do núcleo do seu ser e tenham perdido a soberania de sua pessoa.
A imperfeição de um semelhante cristão, os resíduos de orgulho e concupiscência que ainda permeiam e se misturam em sua vida, contrapõem uma barreira insuperável à união plena com Jesus. Esses cristãos podem ser servos do Senhor, possivelmente até seus amigos, mas jamais filhos, e muito menos noivas. Por conseguinte, a purificação destas relíquias do espírito do mundo, que ainda se apegam à alma, estes remanescentes da "luxúria dos olhos, a luxúria da carne e o gosto da vida", tem sido sempre considerada como um requisito indispensável para essa união íntima e total que distingue a noiva de Cristo.
A tarefa do ascetismo é realizar esta purificação. O ascetismo solicita-nos que renunciemos ao prazer de bens lícitos mesmo que, em si, ele não envolva indulgência de orgulho e da concupiscência que ainda se apegam a nós, porque a renúncia fecha e mantém fechada a passagem para certos instintos fundamentais e fortalece o domínio sobre o orgulho e a concupiscência de um eu, que ama humilde e reverentemente.
Que o ascetismo deste tipo exige renúncia, mesmo quando não há perigo real de se ceder ao orgulho e concupiscência, comprova-se ainda que pelo fato de ele não só proibir ou limitar o prazer de certos bens, mas também requerer a escolha deliberada de certos males. A disciplina e o cilício, por exemplo, para mencionar somente duas opções, são mais do que uma renúncia a bens, são uma escolha voluntária de males. 


Com efeito, podem ser aplicados meramente como um sacrifício¹ ou como auxílios temporários para vencer as tentações². mas seu uso habitual é como um meio de mortificação; em outras palavras, é preparar o caminho através e um treinamento especial para a supremacia necessária do eu humilde, reverente e amoroso sobre concupiscência e orgulho.  esta escolha de males não visa, de certo, a reprimir uma situação concreta, a ação destes vícios, mas a interromper o conforto usual e o bem-estar físico, em si menos inofensivos, a fim de libertar a pessoa espiritual em geral de sua fraqueza com respeito ao corpo e seus instintos. 
O sono, por exemplo, em si mesmo é um repouso do corpo ordenado por Deus. Entretanto, o ascetismo exige não simplesmente a restrição do sono ao limite que a razão mostra ser necessário(em outras palavras, uma recusa em fazer concessão à indolência), mas além disso vigílias, a mortificação de uma cama dura, etc. Negando-se a si próprio coisas que em si mesmas não são concessões a concupiscência (como a medida usual de sono), mas que todavia envolvem necessariamente um contato com o domínio em que a concupiscência atua e que proporciona uma saída para a necessidade elementar de repouso do corpo, o homem deveria, por esta razão, libertar-se gradualmente da escravidão a esse domínio, de modo que mesmo os seus contatos inevitáveis com ele, como durante o sono, comer, beber, etc., não mais envolvam qualquer perigo de rendição aos resíduos de concupiscência. 
Em outras palavras, renuncia-se ao uso legítimo totalmente de certas coisas boas em prol da purificação que, deste modo, se realiza. Esta recusa em abrir as saídas naturais para certas necessidades elementares - por exemplo, a necessidade de dormir, comer, beber, falar - é uma mortificação, um meio através do qual a pessoa espiritual liberta-se da vida dos instintos e adquire um poder sobre todo o domínio da concupiscência.
O ascetismo, entretanto, tem outra finalidade. Exige o distanciamento de toda situação que envolva o perigo de emoções agradáveis de orgulho ou sensualidade. recusa-se, por exemplo, pratos saborosos, porque se teme, numa ocasião particular, sucumbir á gula; renuncia-se a uma cama macia por medo de entregar-se, de algum modo à indolência; a riqueza, como receio de que um indevido deleite nos bens prendesse seu possuidor; a honra e sucesso exteriores com receio de que  constituíssem uma ocasião para gratificar as excitações de orgulho. Em semelhantes casos, a renúncia não constitui um método de autodisciplina a fim de promover um progresso essencial, um meio de purificação, ma suma fuga prudente e cuidadosa de qualquer ocasião que pudesse envolver o perigo, não principalmente de pecado mortal, mas da indulgência deliberada de uma imperfeição e, enfim, de pecado venial.
Ambos os pontos de vista podem ser chamados de ascéticos, embora o significado de ascetismo expresse-se, de modo mais típico, no primeiro. por conseguinte, o desprendimento de bens terrenos por uma razão ascética distingue-se essencialmente pelo caráter negativo do objeto contra o qual se trava a luta, a saber, orgulho e concupiscência. Qual é, pois, a relação entre ascetismo e virgindade? Não podemos responder a esta questão antes que tenhamos investigado mais cabalmente a intenção específica que determina a atitude ascética com respeito a certos bens.


¹ Naturalmente, a penitência oferecida a Deus como um sacrifício situa-se de todo fora da esfera do ascetismo.
² Por exemplo, quando São benedito e São Francisco lançaram-se sobre espinhos, a fim de destruir pela dor física o fascínio das tentações que os assaltaram.
[Continua...]

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